domingo, 27 de março de 2011

a João Cabral de Melo Neto

I. Passagem andreense

Mia na corrente aérea monoxidal de minha cidade
o desejo espesso
do sangue de mulher

Uma vez por mês
de todos os dias
A miséria amarga
esquecida
em magra cadeira de padaria

O fino luxo. Esbelto de fome.
Anônimo nome que pesa menos
que a pena de avestruz
que mede menos que o coração

Encargo diário descendo
como rios de chuva
mar de morros
Lava. Lama. Love.

Move como urubu sem pêlos
a pousar na sorte final
dos pesadelos

Corrente pluvial do Rio
da Av. dos Estados
Momentâneo mangue do dia seguinte

Também limita as vidas
passadas pela presente vinda
enchurrada 
no amarrar da existência

Amar o futuro acima de tudo
Acima das seguras pontes altas

A falta
Mia nos telhados dos apartamentos
Mia
A inspiração poética miserável
que pira, que dorme
na insônia depois do cotidiano agitado

Dorme calado. Dorme-se. 
Conforme se consegue.

II. Paisagem andreense

Três estações diárias
compondo lendárias histórias
reais que formam crônicas
de poetas regionais
Liberais conservadores
salvadores da cultura dissolvida
surfadores da chuva sem saída
No resolvido caráter ideário
imaginário sonhar
no itinerário do trem
que vai e vem 
mas que não chega menos
além de antes de Paranapiacaba.

Lendário cambuci nada inglês
na vila de casas de cores
e amores uniformes turísticos
evaporando lembranças jovens
que transpiram asfalto cinza
grafite
como o ar que respira
a asma secular de vinte e poucos anos

Profanos sonhos de alma humana
a de possuir
vida simples na complexidade urbana

Na neblina que bate suave
mas toca igual
Na chuva que sobe escancarada
e sorrateira
Como vil metal

No pensar que desce e sobe
com o sol que pinta sem tinta
o céu, animal no alto do morro
de qualquer bairro
central ou suburbano 
sub-urbano lateral
Das mesmas nuvens que sobem cinzas
como o copo sujo do bar
do trabalhador que toma uma,
ou duas, ou três para aguentar
na anestesia da lama sem mangue
No barraco de pau sem pique

Templos egípcios latino americanos 
nada indianos, nada índios , nada europeus
nada negros nem amarelos
E de todos.

III. Cotidiano de raíz

Uma fruta irrefuta à essência
miscigenada, dita misturada,
mas de nada mesclada,
é o gozo da prostituta
num dia de muito lucro
no sorriso miserável
para seguir adiante
no script coadjuvante 
do papel social
nada reciclável.
Social vida de novelas ideais
que cada dia mais
faz o capítulo
com a expectativa de fazer
sobreviver a parcela
da inevitável existência
Da espessa linha de ônibus intermunicipal
carretel no tricotar obrigatório de haver
de ser...

Essências de desejos menos
espessos que o sangue
do homem que valeria menos
o miar soturno no telhado
das casas simples
que habitam famílias complicadas
na mesma necessidade de existir
de não se extinguir
não se sabe por que.

E eu como flores e cheiro frutas
Bebo gotas no guarda-chuva
Que as árvores abortam
De semente que não semeia

Eu não broto
Eu não semeio
Eu exalo
(como plantas no ralo)
Eu não tenho raíz.


Nenhum comentário:

Postar um comentário